30 de julho de 2010

Cidade vazia

No momento que ela disse "Não é nada com você, mas acabou o que havia em mim" o tempo parou. Ela evitou meus olhos e afastou o cinzeiro ainda com o cigarro em brasa. O choque que entrei era fisicamente evidente, mas quando ela olhou novamente para mim, apresentou-se muito firme e séria. Não tive palavras, não tive idéias. Apenas senti a necessidade instintiva de acordar. Talvez meu cérebro realmente achasse que eu estava sonhando. Acho que nem eu sabia ao certo.

Luiza pousou duas notas de cinco e uma de vinte sobre o guardanapo intocado, colocou rapidamente sua mão sobre a minha como se fosse dizer algo e se retirou evitando me encarar. Fugindo com medo de me ver destruído. Fugindo não, me deixando. E nunca esqueci que ela me deixou nesse dia e nesta frase "Não é nada com você, mas acabou o que havia em mim". E sozinho na mesa, eu soube que cairia um dilúvio, que o sol iria sumir na minha metade do planeta. Meu coração parecia completamente vazio, meu corpo inteiro ficou oco.
Quando retornei à superfície, já tinha saído do restaurante e estava duas quadras adiante. Meu coração doía, meu peito queimava. Fiquei tonto e vomitei enquanto me segurava no poste. Sujei a bainha da calça e os sapatos, meu desamparo era visível. Pensei em correr, beber, fumar, me jogar na frente de algum carro... Não eram pensamentos, e sim impulsos. Naquela noite eu vaguei por ruas longas e largas. Andei até sentir dores na panturrilha e na coxa, então andei mais ainda.
Por diversas vezes o impulso de andar no meio da rua retornou, até que obedeci. Caminhei na faixa amarela que dividia as pistas da avenida, e por vezes, na contramão. Nenhum carro passou por mim, ninguém. Caminhei assim por horas descendo a Avenida Boaventura, sabendo que em breve aquela rua estaria ofuscada por cardumes de carros. Entrei na minha rua a caminho de casa com o dia já amanhecendo, senti um cansaço muito grande ao subir a escada. Então sentei no terceiro e último degrau, e de súbito o choro e o soluço subiu pelo peito com violência, não consegui mais segurar. Chorei como um animal, uma criança, um bezerro ou uma freada de moto. Lembrei de todos os momentos maravilhosos que tive com Luiza, pareciam estar todos vivos.
Era 21 de Dezembro. Luiza vestia um short amarelo apertado, uma blusa leve preta de alça, muito casual. Subiu em um lindo par de sandálias dizendo que sairíamos para comprar os presentes, Luiza ficou majestosa. Era 2 de Fevereiro, sua voz estava séria e formal dizendo que sua avó havia morrido, Luiza tinha o rosto firme e silencioso até encostar o rosto em meu peito. Ela chorou durante um tempo que não registrei, mas minha blusa de linho ficou toda molhada. Enquanto seu choro é abafado pelo meu tórax, me questiono por que há maldade no mundo, por que as pessoas queridas morrem. Agora é primeiro de Maio, Luiza acabara de discutir comigo e me esbofetear, eu sabia que estava errado, mas não disse. Senti cheiro de cigarro. Ela havia voltado a fumar. Sem falar nada durante aquela noite, coloquei nossa música para tocar e fizemos amor na cozinha.
Uma folha de mangueira me bateu no rosto e reparei ventava muito. Decidi entrar em casa. Acordei no sofá da sala, já havia escurecido. A primeira idéia que me ocorreu foi a cena da noite anterior, Luiza desviando o olhar e dizendo as mesmas palavras. Peguei o telefone e liguei. Chamou durante um tempo eterno. Ouvi toda a mensagem do correio de voz. Luiza estava lá após a mensagem, eu ouvi sua respiração. Mas mesmo após eu suplicar, chamar o nome dela enquanto seguro o soluço e engulo o pranto. Dizer que precisamos conversar. Ela apenas respirava.
"Não é nada com você, mas acabou o que havia em mim"

Naquela semana não fui trabalhar. Não liguei a televisão. Deitei nos mas diversos cantos da casa. Eu parecia um lenço de nariz amassado e assoado. Eu me sentia o lenço. É impressionante como meu pequeno apartamento parecia grande. Tentava me distrair olhando o teto, os detalhes do lustre, embaixo dos móveis. Meu lar era uma cidade vazia, eu mesmo estava vazio.
Era 16 de Junho. Luiza havia sido demitida da empresa de seu trabalho, fui correndo pegar ela quando soube. Ela entrou no meu carro sem dizer nada, seus óculos escuros não me deixavam ver seus olhos, sua face parecia de cimento. Eu me pergunto se sabia que ela era tão bonita. Então ela suspira, relaxando e soltando uma gargalhada. É 14 de Agosto, ela me conta como foi a aula de Yoga e sorri dizendo que parou de fumar há dois meses e não sente mais vontade. Meu coração dispara.
Perdi a noção do tempo. Acho que passou uma semana, talvez duas. Deviam estar preocupado no trabalho, mas ninguém bateu a minha porta. O telefone tocou algumas vezes, mas não era o número de Luiza. Não atendi. Nada mais importava. Liguei para ela diversas vezes, algumas eu ouvia sua respiração, outras não. Até que não chamava mais. Ela deve ter bloqueado meu número.
Quando comi uma metade mole de torrada com a última gota de ketchup, notei que deveria sair de casa.

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